Hoje resolvi compartilhar com vocês a minha reflexão sobre a palestra do Dr. Sylvan Mintz no AAO Conference (Congresso Americano de Ortodontia) agora em 2024 sobre frenectomia lingual e anquiloglossia. O Dr. Sylvan Mintz é um dos poucos dentistas nos Estados Unidos diplomados pelo “American Board of Orofacial Pain”, o Board Americano de Dor Orofacial e o “Dental Sleep Medicine”. O Board funciona como um certificado, uma diplomação para profissionais que atingem alguns pré-requisitos. O Dr. Sylvan é um profissional com mais de 40 anos de prática clínica no Hospital Infantil de DC. Toda essa conversa parra reforçar que é um profissional experiente e coerente no que se refere à prática clínica baseada em evidência.
Confesso que não conhecia o Dr Sylvan Mintz antes de vê-lo no AAO Conference. Até porque Odontologia do sono nunca foi uma área que eu parasse para ler muito ou me dedicar, apesar da grande importância dos distúrbios respiratórios para pacientes em crescimento e desenvolvimento. O que me motivou a assistir esse tema foi o título da palestra: “Frenectomy in relation to obstructive sleep apnea and growth & development”. Confesso que o tema Frenectomia x crescimento e desenvolvimento tem me intrigado um pouco nos últimos anos. Ao observar uma mudança importante de pensamento ou conduta na prática clínica começo a me perguntar qual a real motivação para tal e o que aconteceu com todos os pacientes que até então não se submeteram ao determinado procedimento. Por exemplo, ao pensarmos no Botox é fácil entender o aumento do número de procedimentos e na procura por esse tipo de tratamento…simples….o aspecto da pele envelhecida é nítido nos pacientes que não fazem o procedimento ao longo do tempo…aumento da procura, baixa no custo…pronto! explicado…simples assim. Agora em relação a frenotomia lingual a resposta para mim ainda não está tão clara.
Nos EUA o diagnóstico da “língua presa” ou anquiloglossia teve um aumento de 834% de 1997 a 2012 e o número de frenectomias linguais aumentou em 866% no mesmo período de tempo. Uma revisão da literatura publicada na Revista Odontol. UNESP em 2023 encontrou prevalência do diagnóstico de anquiloglossia variando entre 2,6 e 17% no Brasil, reforçando a necessidade de estabelecer o melhor instrumento para avaliação a fim de calibrar os profissionais da saúde de maneira geral. De fato há diferentes conceitos de anquiloglossia (“língua presa”), assim como diferentes instrumentos de diagnóstico levando a diferentes condutas terapêuticas. O prof. Sylvan Mintz em seu curso no Congresso Americano de Ortodontia apresentou diferentes imagens do mesmo paciente que levariam a condutas terapêuticas e diagnóstico completamente opostos. A individualidade clínica, a mobilidade lingual e a dificuldade de manipulação da língua no bebê dificultam muito a obtenção do diagnóstico adequado.
Concordo que atualmente o olhar para a amamentação e para a importância das alterações funcionais são de grande valia e estão muito mais aprimorados quando comparados a 20 anos atrás. Porém o que me questiono é, o que aconteceu com todas as crianças que nasceram antes de 1997 e que teriam o diagnóstico de anquiloglossia e não realizaram frenotomia? Será que hoje não teríamos uma prevalência de problemas funcionais muito maior em jovens e adultos? Não sei, pontos a se pensar!
A literatura apresenta uma série de alterações associadas à anquiloglossia como dificuldade na fala, dificuldade de amamentação, problemas sociais, alterações do crescimento e desenvolvimento dos maxilares e apneia obstrutiva do sono. Todas esses fatores associados são relativamente simples de entendermos. A dificuldade na fala e amamentação pela mobilidade lingual limitada, os problemas sociais pela vergonha diante de alteração de fala, a apneia obstrutiva do sono pela falta de estímulo da língua no crescimento transverso da maxila ou mesmo o desenvolvimento mandibular pela posição de língua “baixa”. Essas associações são compreensíveis, porém, o que devemos nos perguntar é: será que a famosa língua presa é realmente o principal fator etiológico diante de cada uma dessas características? a resposta a essa pergunta é clara: NÃO, nem sempre! Aliás, na grande maioria das vezes a o fator etiológico vai além da anquiloglossia.
Eu não quero aqui dizer que o procedimento é contra-indicado ou algo do tipo. Muito pelo contrário, quero aqui expor uma preocupação para que os profissionais da saúde reflitam e se preparem de forma adequada ao procedimento, já que o diagnóstico da anquiloglossia por si só pode ser inconclusivo, principalmente no neonato. A literatura mostra que a frenotomia (quando devidamente indicada) no bebê apresenta um impacto positivo na amamentação. Porém, a Academy of breastfeeding Medicine preconiza que o diagnóstico seja realizado após avaliar uma série de fatores e não com uma única ferramenta de diagnóstico. Entre as diversas publicações sobre anquiloglossia publicadas nos últimos 20 anos comparando os impactos da realização ou não de procedimento cirúrgico no neonato observa-se cerca de somente 5 estudos clínicos randomizados e controlados. Em 2017, uma revisão da Cochrane mostrou que todos os 5 estudos foram considerados limitados em diversos pontos-chaves, ou seja, a evidência científica para frenotomia lingual ainda não embasa a prática clínica de forma absoluta, apesar de diversos trabalhos apresentarem desfechos positivos após a realização do procedimento. Para acessar o protocolo estabelecido pela Academia Americana de Amamentação em português é só acessar o site e baixar o protocolo nesse link.
Confira aqui a revisão sistemática publicada na Cochrane
Então, o que podemos concluir? Após a minha breve pesquisa concluo que realmente há um aumento no número de frenotomias linguais em neonato nos últimos anos. Porém, apesar de entender que a anquiloglossia está associada a diversas outras alterações funcionais, essa não parece ser o fator etiológico principal em grande parte dos lactentes que apresentam dificuldade de amamentação ou mesmo das demais alterações funcionais. A amamentação natural é de suma importância para o crescimento e desenvolvimento do bebê e deve ser estabelecida nos primeiros dias de vida. Contudo, a indicação do procedimento de frenotomia deve ser realizada com cautela por uma equipe multidisciplinar que saiba fechar o diagnóstico com diferentes ferramentas de avaliação em uma visão do todo e não isolada. A literatura mostra que a terapia miofuncional parece ter um papel fundamental função lingual nos casos de anquiloglossia e que muitos problemas de amamentação podem ser solucionados com orientação e manejo.
É incrível a busca pelo conhecimento que tenho visto nos últimos anos. O acesso à informação está cada vez mais fácil e isso permite que os profissionais se tornem cada vez mais qualificados. É muito bom ver tantos profissionais da saúde entendendo a importância de “olhar” a criança como um todo além das suas áreas específicas de atuação. Minha única preocupação é que profissionais não qualificados estejam realizando diagnósticos e intervenções de forma indiscriminada buscando um retorno financeiro na realização do procedimento.